O que penso sobre a eternidade daquele(a) que tirou sua própria vida.
Pois bem, parto do pressuposto de que vivemos numa sociedade que a visão religiosa acerca daquele que tirou a própria vida é de que esse indivíduo estará para sempre condenado ao inferno. Esse argumento é normalmente bem-vindo quando o falecido não possuiu laços afetivos tão intensos, diante desses que emitem tais condenações verbais. É coerente dizer que muitos passam a rever seus conceitos quando vivem essa situação nefasta com o filho, uma filha, com um pai, ou com sua mãe, ou alguém muito próximo.
É preciso entender que existe uma diferença entre suicídio e aquele que tirou a própria vida; ou seja, tirar a própria vida vai além do suicídio consciente. Um indivíduo que dá cabo em sua existência pode estar profundamente enraizado num momento marcado por angustias, ou até mesmo por indução velada alheia, o que poderia ser diferente se seu entorno e sua mente estivesse em plena sanidade. Alias, hoje temos a consciência de que pensamentos de morte são mais corriqueiros do que se pensa e muitas vezes surgem com roupagem quase que discreta.
A abrangência do “tirar a própria vida”
Entenda: Nós temos como base do viver a luta pela sobrevivência diária. Portanto, qualquer pessoa que deixa em qualquer circunstância de lutar para essa sobrevivência, automaticamente pode entrar no contexto do “tirar a vida”. Quer exemplos?
- Alguém que não quer mais tomar o remédio que ainda lhe dá condições de vida;
- Aquele(a) que desiste de passar por uma cirurgia e se entrega, sabendo que a morte é inevitável;
- Alguém que mesmo sabendo do perigo de morte imediata e certa, enfrenta o perigo.
- Ou ainda temos aqueles desejos camuflados, aparentemente espirituais, mas carregados com pensamentos de morte: “Quero ir para o céu, pois não suporto essa terra”. Ou seja, por não saber viver de maneira coerente, racional e emocionalmente equilibrada, muitas pessoas conotam o desejo suicida e legitimam-no de maneira espiritual e “religiosamente correto”.
Entendeu? Por isso não podemos catalogar todo suicídio no mesmo bojo. Existem aqueles que são feitos de forma consciente e deliberada, mas existem aqueles, que aqui chamamos de tirar a própria vida, que na maioria dos casos, parte de um momento de irracionalidade, ou de uma não observação ou visão aprofundada e lúcida da situação. Tiram a própria vida devido o descontrole e a pressão psicológica que estão vivendo no momento.
Sendo mais enrijecido, o suicida no sentido lato da palavra, é aquele que não encontra em si e nem em nada dessa existência, e ainda sendo completamente e conscientemente descrente, não somente nessa vida, mas também no pós morte, pois não crê que exista algo esperando do outro lado. Somente alguém que vive uma vida de satisfação e compensações no que é material (um materialista), ou um ateu convicto, poderia cometer suicídio de fato; os demais que tiram suas vidas, são sofredores buscando balsamo para suas feridas da alma, pois no fundo no fundo, ainda possuem esperança, mesmo que não nessa vida.
O que a Bíblia diz?
Aí você poderia dizer; E a Bíblia? Eu lhe respondo:
- O foco abordado na Bíblia, inclusive na lei, é de não matar os outros, mas não fala do ato de auto-morte em razão da dor.
- Em Jesus, não temos nada que tenha sido dito que temos conhecimento. Portanto, no que a Bíblia ficou quieta, quem se atreverá a condenar alguém?
- A Bíblia precisa ser lida e vivida segundo a ótica de Cristo, não segundo os regimentos dogmáticos institucionais que mudam de tempo em tempo.
- Para aqueles que usam a lei de Moisés para montar uma doutrina teológica do suicídio, é preciso lembrá-los que o antigo testamento em suas leis, nos apresentam um ideal de vida, ou uma demonstração do que é útil para as pessoas, como um modelo ideal a ser vivido. A lei mosaica não proporciona forças a ninguém, somente mostra o problema, aponta o erro, ou seja, ela não garante que pessoa sempre respeitará a própria vida, mas poderá mostrar a ela, como um bip continuo, que essa saiu do natural, ou do ideal para os seres humanos, quando essa pessoa começar a nutrir em si pensamentos autolesivos. É por isso que temos Jesus que nos mostra a enxergar a vida e as pessoas em amor e não em regras tão somente. Jesus vai além da Lei; não somente aponta o problema, mas o caminho da remissão.
A observação da lei desprovida de amor gerou na cristandade desde tempos, ritos, cerimonias, regras e conceitos, que são pautados em disciplina corporal, mas que pouco tem proveito na compreensão e na praticidade genuína das Palavras de Cristo.
Destinando o suicida ao inferno
Foi no contexto das interpretações bíblicas religiosas desde tempos que acabaram por satanizar todos quanto tiraram a própria vida, destinando-os ao inferno, pois tratava-se de uma interpretação daquela época. Ou seja, essa sina dogmática acerca do falecido e seu destino, é algo que fora construída nos rincões da idade média, nas interpretações bíblicas do clero católico medieval. Os cristãos nos dois primeiros séculos e parte do terceiro, ou mesmo entre os judeus como protagonistas do judaísmo, não possuíam essa mesma interpretação como fora construída pela igreja católica apostólica romana, que a partir do século III e IV passou a desenhar o esboço de uma teologia do suicídio que valeria até os dias atuais. Um suicida na idade média era impedido de ser enterrado nos cemitérios de cristãos. No século XVI, Martinho Lutero ousou desafiar a igreja em sua época, quando enterrou um rapaz que havia cometido suicídio; destinou a esse um sepultamento digno e num local que seria proibido para o falecido, gritando com seus atos que o amor de Deus era muito maior do que o ato imprudente daquele jovem sofredor. Esse fato trouxe a igreja na ocasião, total espanto e indignação, porém Lutero via além dos conceitos institucionais, olhava segundo a ótica de Cristo para a ocasião.
Olhando com outros olhos
Creio que alguém que chega ao ponto de tirar sua própria vida, o faz em razão da agonia que vive e na total descrença de dias melhores, catapultando suas esperanças no depois da morte, na espera de paz e harmonia em outra vida. São aflitos, machucados, depressivos, tentando encontrar alívio e vida e não morte, porém nesse caso a morte é a única forma que encontram de experimentar a vida que não conseguem viver enquanto vivos.
Portanto, como disse o Psicanalista Caio Fábio, o suicídio (seja do sofredor ou do ateu consciente) não deve ser nunca objeto de juízo humano, pois, de fato, ninguém sabe quem, matando-se, suicidava-se. Além disso, como a Bíblia não “teologiza” sobre o tema, tem-se mais uma razão para não especular. Afinal, trata-se de “terra santa”, na qual se deve entrar sem as sandálias das falsas certezas e das muitas presunções.
Muitos ao se deparar com alguém num caixão que atentou contra a própria vida, tendem a destilar suas certezas religiosas, quando o mais coerente seria ficar calado, pois qualquer juízo, pode ser uma blasfêmia contra a vida humana. Não precisamos de muito e sim somente a experiência de vida para compreender que toda pessoa que na vida possui a morte como seu pior adversário, esse quer viver e manter-se vivo; porém essa mesma pessoa tendo como a pior tragédia a própria vida, é claro que o desejo dela será de morrer, pois nesse caso a morte se configura em algo mais agradável do que a vida.
Fica óbvio até aqui que uma mente que se ache normal, abalizada e bem alicerçada na fé não apelará para o atentando contra a existência, apesar das dificuldades que todos atravessamos. Sendo assim, lhe conclamo a perceber que o suicídio em todos os sentidos deve, sem sombra de dúvida, ser combatido com todas as forças diante do fato de que precisamos embutir nos sofredores a esperança e promessas de vida em Cristo aqui, enquanto vivos nessa terra; mas nunca podemos tratar casos que eventualmente possam acontecer como uma auto perdição, ou um pecado imperdoável diante de Deus.
O entendimento do Evangelho sobre o assunto
Você percebe como é difícil trazer essa esperança para os dias que vivemos, quando todas as religiões buscam projetar nos fieis somente paz e contentamento do outro lado? Seja qual religião for, todas elas fazem questão de retirar da terra qualquer tipo de alegria, esperança, paz, contentamento, sorriso; indicando somente no porvir essas benesses. São religiões que não aprenderam com Jesus a necessidade de vivermos sobriamente nessa terra; e que o porvir somente será reflexo do que vivo aqui e agora.
Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo. (João 16.33)
Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. (Romanos 8.36,37)
Além da esperança, a Bíblia é cirúrgica ao nos ensinar que mesmo uma pessoa abalizada, ou equilibrada emocionalmente, pode sofrer situações que a faça desesperar-se contra a própria vida. Isso aconteceu com o Apóstolo Paulo, um homem fenomenal em todos os sentidos, que não sofria de nenhum distúrbio psíquico, mas como peregrino nessa terra teve pensamentos de morte.
Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida. (II Coríntios 1.8).
Veja o que uma pessoa tão abalizada quanto Paulo, e que teve um maravilhoso encontro com Jesus, chegou a ponto de desejar. Agora imagina se essa mesma situação que acometera Paulo atingisse, alguém que possui transtorno bipolar, esquizofrenia, um tumor maligno no cérebro, depressão, síndrome do pânico, dependência de álcool ou drogas, borderline, lesões desfigurantes e constantes, epilepsia, trauma medular, etc; digo isso pois essas são características que estão presentes nas pessoas que se suicidam. E então? Nenhuma pessoa de sua igreja ou religião sofre de alguns desses males? Creio que você não pode negar. Então podemos concordar que muitas pessoas que sofrem esses disparates psicológicos podem chegar a um nível extremado de desespero a ponto de buscar uma esperança na morte.
Se formos para os primeiros séculos da igreja, vamos ver uma grande perseguição aos nossos irmãos, que criou entre eles uma espécie de cruzada pela morte para obtenção do galardão divino. Sim, muitos cristãos se negavam a fugir do perigo, ou das autoridades, mesmo podendo. Eles diziam que ninguém tiraria a coroa a eles reservada, mesmo que correndo atrás da morte. Essa visão foi muito comum entre os cristãos mais novos, devido a tamanha opressão que sofreram, porém, estavam sendo imaturos interpretando o “morrer com Cristo é lucro” de maneira equivocada, tendo que os cristãos mais velhos e experientes chamar a atenção desses para não agirem assim. Pra você, esses cristãos suicidas mártires que gritavam aos Romanos: “Ei estamos aqui, venham nos matar” mereciam ser condenados ao inferno? Não? Percebes? Se você consegue entender as razões de um suicida, o que diria Deus, o Pai de amor.
Conclusão
É por isso que no inicio eu disse que as condenações normalmente partem daqueles que são distantes da pessoa que cometeu o atentado contra própria vida. Pois, quando se conhece, quando se viveu junto, quando se ama, qualquer pessoa automaticamente, e como instinto divino em nós, se nega acreditar que o falecido não esteja junto de Deus. E sabe qual a razão disso? É porque o amor dilacera os dogmas; a amizade arromba a porta das doutrinas de condenação ao suicida; os laços afetivos aniquilam as teologias engessadas que somente se sobrevivem à distância. Pois no fundo de cada alma se sabe que não existe nenhuma explicação institucional dogmática que possa de fato acalmar um coração em luto pelo ente que partiu, mas pode brotar esperança quando vozes amorosas se unem para aplacar a dor de alguém.
Termino parafraseando uma frase do Caio Fábio: Somente os pagãos conseguem mandar um estranho suicida para o inferno; mas nem mesmo os cristãos-pagãos conseguem enviar para o inferno um filho suicida. Pense nisso!